O mau samaritano

Foto: Ana Machado

Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
perto de um louco, de um triste, de um miserável,
sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
que outros precisam de mim que preciso de Deus
quantas criaturas terão esperado por mim
apenas um olhar - que eu recusei.

(Murilo Mendes)


FELIZ NATAL!
E que o verdadeiro espírito de Natal, de renovação, de paz e solidariedade, permaneça não só por este tempo, mas em todos os dias, de todos os meses, de todos os anos!

Beijo a todos!

Garotos

Foto: Mandie D.

Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
"Garoto danado!"
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu, com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol assombrava:
"Daquele tamanhinho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
nesse tico de gente 
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas?"

(Vladimir Mayakovisky)



Anexo


Eu não danço conforme a música:
meu coração toca uma melodia diferente

- razão pela qual nunca me importei
por não ser a pequena bailarina
na caixinha de alguém.

(Kenia Cris - escreve em Tertúlia Pão de Queijo e Poesia Torta)


A ponte

Foto: Sandra Hiller

O desenho da ponte é justo e firme, calmo e exato.
Nada poderá perturbar as suas linhas definitivas.
A sua arquitetura equilibra-se no ar
como um navio na água, uma nuvem no espaço.
Embaixo da ponte há ondas e sombras.
Os mendigos dormem enrodilhados nos cantos.
Não têm forma humana. São sacos no chão.
Por momentos parece ouvir-se choro de uma criança.
A água embaixo é suja,
o óleo coagula, em nódoas luminosas, reflexos lacrimejantes.
Um vulto debruçado sobre as águas
contempla o mundo náufrago.
A tristeza cai da ponte
como a poesia cai do céu.
O homem está embaixo aparando as migalhas do infinito.

A ponte é sombria como as prisões.
Os que andam sobre a ponte
sentem os pés puxados para o abismo.
Ali tudo é iminente e irreparável,
dali se vê a ameaça que paira.
A ponte é um navio ancorado.
Ali repousam os fatigados,
ouvindo o som das águas, a queixa infindável,
infindável, infindável...
Um apito dá gritos
a princípio crescendo em uivos, depois mantendo bem alto o apelo desesperado.
Passam navios. Tiros. Trovões.
Quando virá o fim do mundo?
Por cima da ponte se cruzam
reflexos de fogo, relâmpagos súbitos, misteriosos sinais.
Que combinam entre si os astros, inimigos da Terra?
Quando virá o fim dos homens?
A ponte pensa...

(Dante Milano)

Concentração

Foto: Martin Preissner

A luz da escrivaninha pisca
o livro aberto sobre a mesa
buzinas lá fora
a cidade chama
vozes,
ruídos,
um grito.
Blecaute.
O computador desliga
e-mail,
mensagem,
resposta.
O celular
o livro aberto sobre a mesa
em que página parei?
O e-mail,
a resposta
página 55.
O telefone toca
é hora do jantar
a cidade, lá fora, chama.

Priscila Mondschein

"Poeta é quem vê"

Foto: Eckenheimer

O poeta me viu

bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou

a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz

poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim

diz

(Alice Ruiz)



Sobre domingos




Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

(Carlos Drummond de Andrade)

Florbela Espanca

Foto: De-Light


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
a essa hora dos mágicos cansaços,
quando a noite de manso se avizinha,
e me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
a tua boca... o eco dos teus passos...
o teu riso de fonte... os teus abraços...
os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
traça as linhas dulcíssimas dum beijo
e é de seda vermelha e canta e ri
e é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
e os meus braços se estendem para ti...

(Florbela Espanca)





ANEXO


Amou-me como um deus
amei-o como louca.
Paixão barroca!

(Tânia Diniz)

Sem título




Hoje acordei entoando aquela música
as mesmas notas,
os mesmos tons tão conhecidos
a letra, esta também, nunca muda por inteiro,
apenas pequenos trechos, personagens de uma trama que nem começou...
Trilha sonora de um filme sem fim,
o som ecoa pela sala vazia,
o quarto vazio,
quisera eu ter a mente vazia...
Escapa um ruído, ao fundo, quase inaudível
e se junta aos quases da sala, e aos outros tantos de minha vida,
como agora,
como dantes
a mesma música, as mesmas notas,
apenas a letra, veja, ouça:
percebe? Nunca muda por inteiro...
E eu recolho todas as páginas,
partituras rabiscadas,
de ontem, de hoje, talvez de amanhã,
guardo-as todas em minha caixa dourada, cor de luz
e deixo a sala, vazia.

(Priscila Mondschein)

Quintana


As coisas

O encanto
sobrenatural 
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- é simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!

(Mário Quintana)

Paul Éluard

Seus olhos sempre puros

Dias de lentidão, dias de chuva,
dias de espelhos quebrados e agulhas perdidas,
dias de pálpebras fechadas ao horizonte dos mares,
de horas em tudo semelhantes, dias de cativeiro.

Meu espírito que brilhava ainda sobre as folhas
e as flores, meu espírito é desnudo feito o amor,
a aurora que ele esquece o faz baixar a cabeça
e contemplar seu próprio corpo obediente e vão.

Vi, no entanto, os olhos mais belos do mundo,
deuses de prata que tinham safiras nas mãos,
deuses verdadeiros, pássaros na terra
e na água, vi-os.

Suas asas são as minhas, nada mais existe
senão o seu voo a sacudir minha miséria.
Seu voo de estrela e luz
seu voo de terra, seu voo de pedra
sobre as vagas de suas asas.

Meu pensamento sustido pela vida e pela morte.

(Paulo Éluard - tradução de José Paulo Paes)

Indecisão amorosa

- Então me digo:
"Não vou mais vê-la"
e no dia seguinte
quero tê-la.

Então me digo:
"-É a última vez"
e me resigno.
Mas quando anoitece
sou eu quem ligo.

"-Começo a esquecê-la",
me repito.
E numa esquina
invento vê-la.

De novo afirmo:
Melhor parar
e aí começo
a desesperar.

O tempo todo
a estou deixando
e mais a deixo
partido
ao seu amor regresso
e partindo
vou ficando.

(Afonso Romano de Sant'Anna)

E é partindo que estou ficando... :)

...

Esta semana convido a todos para um passeio pelo Campo de Orquídeas da querida amiga Karla Julia!
Eu estou por lá, em poesia e entrevista! É só clicar em Convidados!!!



"Eu, poema inacabado
ainda falta um último verso
que me complete...

aquele em que escreverei teu nome."

Karla Julia

Fernando Pessoa


As nuvens são sombrias
mas, nos lados do sul,
um bocado do céu
é tristemente azul.

Assim, no pensamento,
sem haver solução,
há um bocado que lembra
que existe o coração.

E esse bocado é que é
a verdade que está
a ser beleza eterna
para além do que há.

(Fernando Pessoa)

Última ciência

Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia, 
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
- Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.

(Herberto Helder - trecho de "A Última Ciência")

A poesia sempre tentando compreender os mistérios que nos cercam!

Vibrações do tempo


Pesquisa

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
e um tempo para o pássaro
e dentro e fora do homem
um tempo eterno de solidão.
Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
vi espaços claros, bosques, igapós,
o sumidouro de um tempo subterrâneo
(patético, mesmo às almas menos presentes)
vi, como se vê um avião,
cidades conjugadas pelo sopro do homem,
a estrada amarela, o rio barrento e torturado,
tudo tempos de homem, vibrações de tempo, vertigens.

Senti o hálito do tempo dando melancolia
aos que envelhecem no escuro das boites,
vi máscaras tendidas para o corpo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
e corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
sentimos o invisível fender do silêncio,
um tempo que se  ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
grande cão infeliz,
investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a eternidade.

(Paulo Mendes Campos)

Da faxina


todo dia de manhã
ela limpava
esfregava
remexia
asseava
enxaguava
alvejava
aparava
encerava
purificava
o sentimento.
não gostava de amor empoeirado.
o zé?
o zé felizmente fazia a parte dele
e não entrava em casa com os pés sujos.

(Talita Prates)

"Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor..."
(Clarice Lispector)

A Talita escreve na Confraria dos Trouxas!

Confidência do itabirano


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

(Carlos Drummond de Andrade)

Sobre incompletudes


Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego de farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teia de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua Incompletude?)

(Manoel de Barros)

Este foi colhido no Campo de Orquídeas da amiga Karla!