+ curtinhas sobre a noite!


Foto: DDiArte


hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de laranjeira

****

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa

(Paulo Leminski)



Vento e violino


Dentro da sala um violino cantou,
cantou sobre amor, selvagem, mas agradável.
Lá fora, através dos ramos, o vento cantou:
O que deseja, minha criança adorável?

Dentro da sala um violino cantou:
quero felicidade, quero felicidade!
Lá fora, através dos ramos, o vento cantou:
desejo de todas as idades.

Dentro da sala um violino cantou:
se isto é antigo, para mim é novo.
Lá fora, através dos ramos, o vento cantou:
vários já morreram de remorso.

A última nota do violino soou;
a janela tornou-se pálida e obscura,
mas ainda, por muito tempo, cantou e cantou
o vento, de dentro da floresta escura:

O que deseja, minha criança pura?


(Christian Morgenstern - Tradução de Priscila Mondschein)

Was willst du, Menschenkind?

Contemplação da nuvem


a vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem
passando.

E uma nuvem passando
ensina-nos mais coisas que cem pássaros
mil livros um milhão de homens.

A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem.
Passando.

(Antonio Brasileiro)


Cabe a nós passar com ela, ou assisti-la da terra!


Curtinho


Sobre o sono

O sono chega
quando a noite tenta
pendurar-se em minhas pálpebras
amarrando estrelas
- uma a uma -
em cada cílio.

(Rita Apoena)

Jandira

Imagem: Jovem virgem sodomizada por sua própria castidade - Salvador Dali

Pensei em uma homenagem às mulheres, já que hoje é nosso dia. Então, comemoremos com a Jandira, de Murilo Mendes... um dos mais belos poemas que já li sobre a mulher!


O mundo começava nos seios de Jandira.


Depois surgiram outras peças da criação:
(às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
o ar inteirinho ficou rodeado de sons
mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
captavam objetos animados, inanimados,
dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar.
Quando Jandira penteava a cabeleira...


Depois o mundo desvendou-se completamente,
foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
de cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
de sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira,
e eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com força das máquinas;
não caía nem um fio,
nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
tal qual um sol mirim
em roda do cheiro de Jandira
a família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
por causa de Jandira.
E um padre na missa
esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.


E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
apareceram ritmos que estavam de reserva,
combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.


E o marido de Jandira
morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
fez um grande esforço para ressuscitar:
não se conforma, no quarto escuro onde está,
que Jandira viva sozinha,
que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
e que ele fique ali à toa.


E as filhas de Jandira
inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
espera que os clarins do juízo final
venham chamar seu corpo,
mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.