Definição de poesia


Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, a folha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim uma estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

(Boris Pasternak - Tradução de Haroldo de Campos)

Não passou

Thomas Schaefer

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a  tua mão, nossas mãos - 
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

(Carlos Drummond de Andrade)

Soneto de devoção




Essa mulher que se arremessa, fria
  e lúbrica aos meus braços, e nos seios
me arrebata e me beija e balbucia
versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
que se ri dos meus pálidos receios
  aúnica entre todas a quem dei
os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
  a miséria e a grandeza de quem ama
  e guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! – uma cadela
talvez... – mas na moldura de uma cama
nunca mulher nenhuma foi tão bela!

(Vinicius de Moraes)

 
 
 
 
ANEXO
 

Noite carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
 
(Ana Cristina César)