A ponte

Foto: Sandra Hiller

O desenho da ponte é justo e firme, calmo e exato.
Nada poderá perturbar as suas linhas definitivas.
A sua arquitetura equilibra-se no ar
como um navio na água, uma nuvem no espaço.
Embaixo da ponte há ondas e sombras.
Os mendigos dormem enrodilhados nos cantos.
Não têm forma humana. São sacos no chão.
Por momentos parece ouvir-se choro de uma criança.
A água embaixo é suja,
o óleo coagula, em nódoas luminosas, reflexos lacrimejantes.
Um vulto debruçado sobre as águas
contempla o mundo náufrago.
A tristeza cai da ponte
como a poesia cai do céu.
O homem está embaixo aparando as migalhas do infinito.

A ponte é sombria como as prisões.
Os que andam sobre a ponte
sentem os pés puxados para o abismo.
Ali tudo é iminente e irreparável,
dali se vê a ameaça que paira.
A ponte é um navio ancorado.
Ali repousam os fatigados,
ouvindo o som das águas, a queixa infindável,
infindável, infindável...
Um apito dá gritos
a princípio crescendo em uivos, depois mantendo bem alto o apelo desesperado.
Passam navios. Tiros. Trovões.
Quando virá o fim do mundo?
Por cima da ponte se cruzam
reflexos de fogo, relâmpagos súbitos, misteriosos sinais.
Que combinam entre si os astros, inimigos da Terra?
Quando virá o fim dos homens?
A ponte pensa...

(Dante Milano)

Concentração

Foto: Martin Preissner

A luz da escrivaninha pisca
o livro aberto sobre a mesa
buzinas lá fora
a cidade chama
vozes,
ruídos,
um grito.
Blecaute.
O computador desliga
e-mail,
mensagem,
resposta.
O celular
o livro aberto sobre a mesa
em que página parei?
O e-mail,
a resposta
página 55.
O telefone toca
é hora do jantar
a cidade, lá fora, chama.

Priscila Mondschein

"Poeta é quem vê"

Foto: Eckenheimer

O poeta me viu

bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou

a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz

poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim

diz

(Alice Ruiz)