Sobre domingos




Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

(Carlos Drummond de Andrade)

Florbela Espanca

Foto: De-Light


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
a essa hora dos mágicos cansaços,
quando a noite de manso se avizinha,
e me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
a tua boca... o eco dos teus passos...
o teu riso de fonte... os teus abraços...
os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
traça as linhas dulcíssimas dum beijo
e é de seda vermelha e canta e ri
e é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
e os meus braços se estendem para ti...

(Florbela Espanca)





ANEXO


Amou-me como um deus
amei-o como louca.
Paixão barroca!

(Tânia Diniz)

Sem título




Hoje acordei entoando aquela música
as mesmas notas,
os mesmos tons tão conhecidos
a letra, esta também, nunca muda por inteiro,
apenas pequenos trechos, personagens de uma trama que nem começou...
Trilha sonora de um filme sem fim,
o som ecoa pela sala vazia,
o quarto vazio,
quisera eu ter a mente vazia...
Escapa um ruído, ao fundo, quase inaudível
e se junta aos quases da sala, e aos outros tantos de minha vida,
como agora,
como dantes
a mesma música, as mesmas notas,
apenas a letra, veja, ouça:
percebe? Nunca muda por inteiro...
E eu recolho todas as páginas,
partituras rabiscadas,
de ontem, de hoje, talvez de amanhã,
guardo-as todas em minha caixa dourada, cor de luz
e deixo a sala, vazia.

(Priscila Mondschein)

Quintana


As coisas

O encanto
sobrenatural 
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- é simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!

(Mário Quintana)

Paul Éluard

Seus olhos sempre puros

Dias de lentidão, dias de chuva,
dias de espelhos quebrados e agulhas perdidas,
dias de pálpebras fechadas ao horizonte dos mares,
de horas em tudo semelhantes, dias de cativeiro.

Meu espírito que brilhava ainda sobre as folhas
e as flores, meu espírito é desnudo feito o amor,
a aurora que ele esquece o faz baixar a cabeça
e contemplar seu próprio corpo obediente e vão.

Vi, no entanto, os olhos mais belos do mundo,
deuses de prata que tinham safiras nas mãos,
deuses verdadeiros, pássaros na terra
e na água, vi-os.

Suas asas são as minhas, nada mais existe
senão o seu voo a sacudir minha miséria.
Seu voo de estrela e luz
seu voo de terra, seu voo de pedra
sobre as vagas de suas asas.

Meu pensamento sustido pela vida e pela morte.

(Paulo Éluard - tradução de José Paulo Paes)