Última ciência

Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia, 
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
- Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.

(Herberto Helder - trecho de "A Última Ciência")

A poesia sempre tentando compreender os mistérios que nos cercam!

Vibrações do tempo


Pesquisa

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
e um tempo para o pássaro
e dentro e fora do homem
um tempo eterno de solidão.
Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
vi espaços claros, bosques, igapós,
o sumidouro de um tempo subterrâneo
(patético, mesmo às almas menos presentes)
vi, como se vê um avião,
cidades conjugadas pelo sopro do homem,
a estrada amarela, o rio barrento e torturado,
tudo tempos de homem, vibrações de tempo, vertigens.

Senti o hálito do tempo dando melancolia
aos que envelhecem no escuro das boites,
vi máscaras tendidas para o corpo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
e corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
sentimos o invisível fender do silêncio,
um tempo que se  ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
grande cão infeliz,
investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a eternidade.

(Paulo Mendes Campos)

Da faxina


todo dia de manhã
ela limpava
esfregava
remexia
asseava
enxaguava
alvejava
aparava
encerava
purificava
o sentimento.
não gostava de amor empoeirado.
o zé?
o zé felizmente fazia a parte dele
e não entrava em casa com os pés sujos.

(Talita Prates)

"Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor..."
(Clarice Lispector)

A Talita escreve na Confraria dos Trouxas!

Confidência do itabirano


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

(Carlos Drummond de Andrade)