Dia "D"




O amor bate na aorta

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta,
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem, 
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

(Carlos Drummond de Andrade)


Uma homenagem ao dia do nascimento do Itabirano!!! 


Calmaria



Antes minha tristeza era afluente dos teus olhos.
Mas ela foi se esvaindo em lençóis,
Escorreu pelo pé da cama,
Inundou o corredor, molhou as portas,
Serpenteou pelas ruas, infiltrou-se pela terra,
Pela areia, contaminou as brumas,
Diluindo-se em todos os oceanos.
Até que me dei conta que
O triste represado nas águas dos meus olhos acabou tingindo todo o mar e todo o céu de blue.

(Ana Rüsche)

Poema natural

Foto: Stefan Weber



Abro os olhos, não vi nada
fecho os olhos, já vi tudo.
o meu mundo é muito grande
e tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
ela sou eu.
Ontem com aquele calor
eu subi, me condensei
e, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
fecho os olhos e comento:
aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
ela sou eu.

(Adalgisa Nery)

Sobre coisas que se vão

Foto: Axel Busch

Despedidas 

Começo a olhar as coisas como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

(Affonso Romano de Sant'Anna)