Quase



Um pouco mais de sol   - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz?  Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma       
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou... 

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

(Sá Carneiro)

Como nascem as manhãs


O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.

(Flora Figueiredo)

O mendigo


 Foto: Rebecca D.

O Mendigo

Hospedassem-no, por uma noite, em casa, pela manhã concedia um deleite à família: a pessoa mais jovem da casa tocava em sua testa e o que tocasse logo após viraria ouro. Um menino transformou em estátua áurea o irmão mais velho. Uma adolescente dançou nua na chuva e escorreu do céu uma enxurrada de ouro líquido. Uma prima minha recém-nascida apenas apontou o dedo para uma revoada de pássaros ao pôr-do-sol. E, então, amanheceu, na mesma hora, o dia do seu aniversário de quinze anos. Mas isso já era outro tipo de milagre.

(Wilson Torres Nanini)





 Anexo


Asa da palavra

Meu povo tem fome de comida e livros
não existe solidão para quem lê

Um livro pode conter
rios montanhas alegria esperança ruas cidades países

A liberdade
mora na asa da palavra.

(Cláudio Bento)


Ambos escrevem no Tertúlia Pão de Queijo... sou leitora assídua!!!! ;)