Pré-história


Foto: J. Pedro Martins

Mamãe vestida de rendas
tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
cansada de tanto som,
equilibrou-se no azul,
de tonta não mais olhou
para mim, para ninguém!
Caiu no álbum de retratos.

(Murilo Mendes)

Do azul ao álbum de retratos, uma bela forma de lidar com um assunto tão difícil como a morte, fazendo poesia...


Drumundana

E agora maria?

O amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

E agora maria?
vai viver com as outras
vai viver
com a hipocondria.

(Alice Ruiz)


Anexo
II


"Passei o dia com teu céu, lá fora choveu, em mim fez sol."
(Alice Ruiz)




Igual-Desigual


Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinhos são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.

Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.
Todos os partidos políticos são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda são iguais.
Todas as experiências de sexo são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho ímpar.

(Carlos Drummond de Andrade)

Somos deliciosamente diferentes, e isso é o que cria cada beleza ímpar, singular!
Concordo com Drummond!


Cena íntima

Outubro termina a bordo de um ventinho de cambraias, perfeito para cílios e lábios. Ainda há borboletas soprando o véu da primavera. Do outro lado da rua, através dos brincos-de-princesa na treliça que contorna a varanda, posso sentir o coração de um sabiá pulsar ao compasso solitário do assobio. A luz da tarde anucia subitamente escuros, abafa-se, e logo cai a tempestade cai, depenteando o cenário com raios esplêndidos. Cai estrondosa e se vai, deixando a tarde fresca e perfumada. Nos intervalos entre gotas tardias, pesco um sentimento ímpar de plenitude. Mosaicos de folhas e galhos repousam no asfalto cravejado de granizos.

(Ledusha B. A. Spinardi)



Outubro ainda não terminou, mas apreciemos o lirismo de Ledusha!!!

The unending gift


Foto - Alicina

THE UNENDING GIFT

Um pintor nos prometeu um quadro.
Agora, em New Englan
d, sei que morreu. Senti,
como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho.
Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar prefixado
que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo
uma coisa a mais, uma das vaidades ou
hábitos da casa; agora é ilimitada,
incessante, capaz de
qualquer forma e
qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. V
iverá e crescerá como
uma música e estará comigo até o fim.
Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)

(Jorge Luis Borges)

ANEXO I


"A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos."
(Manoel de Barros)