Elegia

Arte: Anne Weirich

Que quer o vento?
A cada instante
Este lamento
Passa na porta
Dizendo: abre...

Vento que assusta
Nas horas frias
Na noite feia,
Vindo de longe,
Das ermas praias.

Andam de ronda
Nesse violento
Longo queixume,
As invisíveis
Bocas dos mortos.

Também um dia,
Estando eu morto,
Virei queixar-me
Na tua porta
Virei no vento
Mas não de inverno,
Nas horas frias
Das noites feias.

Virei no vento
Da primavera.
Em tua boca
Serei carícia,
Cheiro de flores
Que estão lá fora
Na noite quente.

Virei no vento...
Direi: acorda...

(Ribeiro Couto)

 O clima é de melancolia na poesia, mas aqui fora, o clima é de férias, descanso e diversão!

Um ótimo mês a todos, volto no final de agosto ;)
Beijo!

Manoel de Barros


Retrato do artista quando coisa

Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.


(Manoel de Barros)


Meu respeito e admiração pelo poeta de maior doçura dos últimos tempos...
Simplesmente lindo! :)
 

Possessão

Foto: Elisa Müller

Possessão

Às vezes aquele corpo não era meu
- um outro me possuía todo.
A noite é lenta, escura e difícil
e aquele meu corpo rude já fora de muitos.

Ele tinha ódio desses passados,
esfaqueava fantasmas nos lençóis
num círculo em volta da cama.

Dizem que o amor era a entrega.
A ampulheta escorria,
ele iria me perder rápido como tantos outros.
A noite é lenta, escura e difícil.

(Ana Rüsche)

Quentes


Teu corpo seja brasa

Teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo

um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo

(Alice Ruiz)




Anexo

“Um homem do mundo me perguntou:
o que você pensa do sexo?
Um das maravilhas da criação, eu respondi.”

(Entrevista, Adélia Prado)

Eternidade inútil

Arte: Weltenspieglerin

Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:

tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.

Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvem, n'água.

A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.

O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.

(Cecília Meireles)