Indecisão amorosa

- Então me digo:
"Não vou mais vê-la"
e no dia seguinte
quero tê-la.

Então me digo:
"-É a última vez"
e me resigno.
Mas quando anoitece
sou eu quem ligo.

"-Começo a esquecê-la",
me repito.
E numa esquina
invento vê-la.

De novo afirmo:
Melhor parar
e aí começo
a desesperar.

O tempo todo
a estou deixando
e mais a deixo
partido
ao seu amor regresso
e partindo
vou ficando.

(Afonso Romano de Sant'Anna)

E é partindo que estou ficando... :)

...

Esta semana convido a todos para um passeio pelo Campo de Orquídeas da querida amiga Karla Julia!
Eu estou por lá, em poesia e entrevista! É só clicar em Convidados!!!



"Eu, poema inacabado
ainda falta um último verso
que me complete...

aquele em que escreverei teu nome."

Karla Julia

Fernando Pessoa


As nuvens são sombrias
mas, nos lados do sul,
um bocado do céu
é tristemente azul.

Assim, no pensamento,
sem haver solução,
há um bocado que lembra
que existe o coração.

E esse bocado é que é
a verdade que está
a ser beleza eterna
para além do que há.

(Fernando Pessoa)

Última ciência

Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia, 
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
- Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.

(Herberto Helder - trecho de "A Última Ciência")

A poesia sempre tentando compreender os mistérios que nos cercam!

Vibrações do tempo


Pesquisa

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
e um tempo para o pássaro
e dentro e fora do homem
um tempo eterno de solidão.
Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
vi espaços claros, bosques, igapós,
o sumidouro de um tempo subterrâneo
(patético, mesmo às almas menos presentes)
vi, como se vê um avião,
cidades conjugadas pelo sopro do homem,
a estrada amarela, o rio barrento e torturado,
tudo tempos de homem, vibrações de tempo, vertigens.

Senti o hálito do tempo dando melancolia
aos que envelhecem no escuro das boites,
vi máscaras tendidas para o corpo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
e corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
sentimos o invisível fender do silêncio,
um tempo que se  ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
grande cão infeliz,
investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a eternidade.

(Paulo Mendes Campos)

Da faxina


todo dia de manhã
ela limpava
esfregava
remexia
asseava
enxaguava
alvejava
aparava
encerava
purificava
o sentimento.
não gostava de amor empoeirado.
o zé?
o zé felizmente fazia a parte dele
e não entrava em casa com os pés sujos.

(Talita Prates)

"Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor..."
(Clarice Lispector)

A Talita escreve na Confraria dos Trouxas!

Confidência do itabirano


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

(Carlos Drummond de Andrade)