Cantiga para uma saudade

Vou te falar sobre a saudade
é isso tudo que dissestes agora há pouco
e mais o tantão que sobrou de ti em mim

vou te falar sobre saudade
é quando não me vejo mais no espelho
quando choro tão alto que esqueço de soluçar
e chego atrasada para o encontro comigo mesma

vou te falar sobre a saudade
é quando a tinta com que ía escrever não vá
acaba na hora H em que te vejo partir.

(Karla Julia)


Manoel de Barros


Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio líquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

(Manoel de Barros - Trecho de "O Guardador de águas".)



Sobre versos e experiências...

Foto: Jorge Alfar

"Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo o bastante), – são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe (...)"
(Rainer Maria Rilke)



"Denn Verse sind nicht, wie die Leute meinen, Gefühle (die hat man früh genug), - es sind Erfahrungen. Um eines Verses willen muß man viele Städte sehen, Menschen und Dinge, man muß die Tiere kennen, man muß fühlen, wie die Vögel fliegen, und die Gebärde wissen, mit welcher die kleinen Blumen sich auftun am Morgen. Man muß zurückdenken können an Wege in unbekannten Gegenden, an unerwartete Begegnungen und an Abschiede, die man lange kommen sah(...)"
(Rilke - Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge)


Eu mesma

Foto: Ana Dias

Ela veste o brilho exato

corre entre as flores

planta lírios

ela tem segredos

faz angústia

traz sentido

ela tem as mãos vazias

uma saia

dependurada

entre as roupas

também esconde o seu segredo

ela foi

ninguém a viu

entoou

ninguém ouviu

ela, por várias razões,

saltou num mundo tão diferente

do nosso pobre, mundo cão.

(Susana Martins)

Última postagem antes das férias!
Vejo vocês em setembro ;)



Leminski


Foto: Paulo Madeira

Esse súbito não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer
esse sentir-se cair
quando não existe lugar
aonde se possa ir
esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que não me deixa mentir.

(Paulo Leminski)


Esses versos combinam perfeitamente com meu momento, essa poesia vulgar, que insiste em dizer sempre a verdade...

Quintana, novamente!


Estou sentado sobre a minha mala

no velho bergantim desmantelado...

Quanto tempo, meu Deus, malbaratado

em tanta inútil, misteriosa escala!


Joguei a minha bússola quebrada

às águas fundas... E afinal sem norte,

como o velho Sindbad de alma cansada

eu nada mais desejo, nem a morte...


Delícia de ficar deitado ao fundo

do barco, a vos olhar, velas paradas!

Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo.


Pra que partir? Sempre se chega, enfim...

Pra que seguir empós das alvoradas

se, por si mesmas, elas vêm a mim?

(Mário Quintana)

Quintana sempre merece espaço com suas lindas poesias!



Barulho

Todo poema é feito de ar

apenas:

a mão do poeta

não rasga a madeira

não fere

o metal

a pedra

não tinge de azul

os dedos

quando escreve manhã

ou brisa

ou blusa

de mulher.

O poema

é sem matéria palpável

tudo

o que há nele

é barulho

quando rumoreja

ao sopro da leitura.


(Ferreira Gullar)