Liberdade


Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

(Sophia de Mello Andresen)


Em homenagem ao próprio blog!!! :D


Diálogo


Foto: Formas vencem cores - Isabela Daguer

Diálogo

- E você, por que desvia o olhar?

(Porque eu tenho medo de altura. Tenho medo de cair para dentro de você. Há nos seus olhos castanhos certos desenhos que me lembram montanhas, cordilheiras vistas do alto, em miniatura. Então, eu desvio os meus olhos para amarrá-los em qualquer pedra no chão e me salvar do amor. Mas, hoje, não encontraram pedra. Encontraram flor. E eu me agarrei às pétalas o mais que pude, sem querer perceber que estava plantada num desses abismos dentro dos seus olhos.)

- Ah, porque eu sou tímida!

(Rita Apoena)



Estou encantada com a "poesia das pequenas coisas"



+ curtinhas sobre a noite!


Foto: DDiArte


hoje à noite
até as estrelas
cheiram a flor de laranjeira

****

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa

(Paulo Leminski)



Vento e violino


Dentro da sala um violino cantou,
cantou sobre amor, selvagem, mas agradável.
Lá fora, através dos ramos, o vento cantou:
O que deseja, minha criança adorável?

Dentro da sala um violino cantou:
quero felicidade, quero felicidade!
Lá fora, através dos ramos, o vento cantou:
desejo de todas as idades.

Dentro da sala um violino cantou:
se isto é antigo, para mim é novo.
Lá fora, através dos ramos, o vento cantou:
vários já morreram de remorso.

A última nota do violino soou;
a janela tornou-se pálida e obscura,
mas ainda, por muito tempo, cantou e cantou
o vento, de dentro da floresta escura:

O que deseja, minha criança pura?


(Christian Morgenstern - Tradução de Priscila Mondschein)

Was willst du, Menschenkind?

Contemplação da nuvem


a vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem
passando.

E uma nuvem passando
ensina-nos mais coisas que cem pássaros
mil livros um milhão de homens.

A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem.
Passando.

(Antonio Brasileiro)


Cabe a nós passar com ela, ou assisti-la da terra!


Curtinho


Sobre o sono

O sono chega
quando a noite tenta
pendurar-se em minhas pálpebras
amarrando estrelas
- uma a uma -
em cada cílio.

(Rita Apoena)

Jandira

Imagem: Jovem virgem sodomizada por sua própria castidade - Salvador Dali

Pensei em uma homenagem às mulheres, já que hoje é nosso dia. Então, comemoremos com a Jandira, de Murilo Mendes... um dos mais belos poemas que já li sobre a mulher!


O mundo começava nos seios de Jandira.


Depois surgiram outras peças da criação:
(às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
o ar inteirinho ficou rodeado de sons
mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
captavam objetos animados, inanimados,
dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar.
Quando Jandira penteava a cabeleira...


Depois o mundo desvendou-se completamente,
foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
de cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
de sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira,
e eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com força das máquinas;
não caía nem um fio,
nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
tal qual um sol mirim
em roda do cheiro de Jandira
a família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
por causa de Jandira.
E um padre na missa
esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.


E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
apareceram ritmos que estavam de reserva,
combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.


E o marido de Jandira
morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
fez um grande esforço para ressuscitar:
não se conforma, no quarto escuro onde está,
que Jandira viva sozinha,
que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
e que ele fique ali à toa.


E as filhas de Jandira
inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
espera que os clarins do juízo final
venham chamar seu corpo,
mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.