O tempo


O tempo cria um tempo
Logo abandonado pelo tempo,
Arma e desarma o braço do destino.
A metade de um tempo espera num mar sem praias,
Coalhado de cadáveres de momentos ainda azuis.
O que flui do tempo entorna os pássaros,
Atravessa a pedra e levanta os monumentos
Onde se desenrola - o tempo espreitando - a ópera do espaço.
Os botões da farda do tempo
São contados - não pelo tempo.
O relojoeiro cercado de relógios
Pergunta que horas são.

O tempo passeia a música e restaura-se.
O tempo desafia a pátina dos espíritos,
Transfere o heroísmo dos heróis obsoletos,
Divulga o que nós não fomos em tempo algum.

Murilo Mendes


Intervalo (II)

Foto: Uwe Zimmermann

Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.

 
(Sophia de Mello Andressen) 

 

Como um instrumento



Toque-me
Toque baião, toque frevo,
toque rock, toque rumba,
mas não toque nesse assunto
toque tudo sempre assim
só não toque nesse assunto
e nunca toque no fim
toque paixão, toque samba,
toque funk, toque mambo
toque só porque eu mando
toque o mundo, toque fundo
eu quero que você se toque
em cada parte de mim.


(Alice Ruiz)

Leite, leitura

Arte: Christine Ellger


Leite, leitura
letras, literatura
tudo o que passa
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura.

(Paulo Leminsk)

Dois Irmãos

Foto maravilhosa de Pedro Meyer


Chegando em casa

Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia:

- hoje 22 de agosto de 1994
meu marido perdeu, deste terraço:

mais um pôr de sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.

(Affonso Romano de Sant'Anna)
 

Adélia Prado


Poema começado no fim


Um corpo quer outro corpo.

Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

(Adélia Prado)