Soneto de devoção




Essa mulher que se arremessa, fria
  e lúbrica aos meus braços, e nos seios
me arrebata e me beija e balbucia
versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
que se ri dos meus pálidos receios
  aúnica entre todas a quem dei
os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
  a miséria e a grandeza de quem ama
  e guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! – uma cadela
talvez... – mas na moldura de uma cama
nunca mulher nenhuma foi tão bela!

(Vinicius de Moraes)

 
 
 
 
ANEXO
 

Noite carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
 
(Ana Cristina César)


Quase



Um pouco mais de sol   - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz?  Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma       
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou... 

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

(Sá Carneiro)

Como nascem as manhãs


O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.

(Flora Figueiredo)

O mendigo


 Foto: Rebecca D.

O Mendigo

Hospedassem-no, por uma noite, em casa, pela manhã concedia um deleite à família: a pessoa mais jovem da casa tocava em sua testa e o que tocasse logo após viraria ouro. Um menino transformou em estátua áurea o irmão mais velho. Uma adolescente dançou nua na chuva e escorreu do céu uma enxurrada de ouro líquido. Uma prima minha recém-nascida apenas apontou o dedo para uma revoada de pássaros ao pôr-do-sol. E, então, amanheceu, na mesma hora, o dia do seu aniversário de quinze anos. Mas isso já era outro tipo de milagre.

(Wilson Torres Nanini)





 Anexo


Asa da palavra

Meu povo tem fome de comida e livros
não existe solidão para quem lê

Um livro pode conter
rios montanhas alegria esperança ruas cidades países

A liberdade
mora na asa da palavra.

(Cláudio Bento)


Ambos escrevem no Tertúlia Pão de Queijo... sou leitora assídua!!!! ;)

Certezas

Arte: Judith Clay
 
Não sei os mistérios, as mãos, as vidraças;
não sei a hora nem o dia do amor
que em vida é pressa, é vago, é frágil.
Não sei as heranças - o que existe
depois da última hora
do último beijo e da última espera
atrás da porta.
Não sei os meus passos e nem as esquinas.
Não sei se o que encaro é pura rotina
ou etapa que se vence, por mero acaso.
Não sei as vidas que me cercam
e que aguardam atentas, meu gesto
minhas palavras estéreis e amenas
- como algumas mulheres
que cortam a paisagem sem deixar marca.

Não sei o certo e o errado
o que fazer diante do impasse
na dúvida, não sei o resto
na certeza, não sei a meta.
Só sei mesmo que todo tempo é curto
e que meu chão é este:
feito de pedra e pluma
em barro e nuvem e irremediavelmente, meu.

(Eolo Yberê Líbera)



É preciso não esquecer

Arte: Christine Ellger

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta, nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso é esquecer o dia
carregado de atos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco,
pois o resto não nos pertence.

(Cecília Meireles)

Homem escrevendo

Ilustração: Oliver Ray

Um homem escreve sob o sol da tarde.
O que ele escreve?
A mão encardida que mancha a folha branca,
o que ela escreve?
Um Homem, dentre tantos, que escreve o destino dos homens,
o que ele escreve?
Em versos, o caminho da mulher perfumada do outro lado da calçada.
Em prosa, o trajeto trôpego do homem sentado sob o sol.
O que ele escreve?
Não escreve. Pensa em escrever.
Ensaia. A caneta corre.
Não escreve. Pensa, se soubesse...
Um homem sentado sob o sol da tarde.
O que ele pensa?
Pensa que, se talvez escrevesse...
Tudo poderia ser diferente.
O Homem que escreve o destino dos homens,
o que ele escreve?
Escreve tanta coisa, tanta história.
O homem sentado sob o sol pensa:
"Quando Ele vai escrever a minha história?"

Priscila Mondschein