O resto é silêncio



E então ficamos os dois em silêncio, tão quietos
como dois pássaros na sombra, recolhidos
ao mesmo ninho,
como dois caminhos na noite, dois caminhos
que se juntam
num mesmo caminho...

Nada há mais a dizer, depois que as próprias mãos
silenciaram seus caminhos...
Estamos um no outro
como se estivéssemos sozinhos...

(J.G. de Araújo Jorge)

O mau samaritano

Foto: Ana Machado

Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
perto de um louco, de um triste, de um miserável,
sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
que outros precisam de mim que preciso de Deus
quantas criaturas terão esperado por mim
apenas um olhar - que eu recusei.

(Murilo Mendes)


FELIZ NATAL!
E que o verdadeiro espírito de Natal, de renovação, de paz e solidariedade, permaneça não só por este tempo, mas em todos os dias, de todos os meses, de todos os anos!

Beijo a todos!

Garotos

Foto: Mandie D.

Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
"Garoto danado!"
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu, com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol assombrava:
"Daquele tamanhinho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
nesse tico de gente 
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas?"

(Vladimir Mayakovisky)



Anexo


Eu não danço conforme a música:
meu coração toca uma melodia diferente

- razão pela qual nunca me importei
por não ser a pequena bailarina
na caixinha de alguém.

(Kenia Cris - escreve em Tertúlia Pão de Queijo e Poesia Torta)


A ponte

Foto: Sandra Hiller

O desenho da ponte é justo e firme, calmo e exato.
Nada poderá perturbar as suas linhas definitivas.
A sua arquitetura equilibra-se no ar
como um navio na água, uma nuvem no espaço.
Embaixo da ponte há ondas e sombras.
Os mendigos dormem enrodilhados nos cantos.
Não têm forma humana. São sacos no chão.
Por momentos parece ouvir-se choro de uma criança.
A água embaixo é suja,
o óleo coagula, em nódoas luminosas, reflexos lacrimejantes.
Um vulto debruçado sobre as águas
contempla o mundo náufrago.
A tristeza cai da ponte
como a poesia cai do céu.
O homem está embaixo aparando as migalhas do infinito.

A ponte é sombria como as prisões.
Os que andam sobre a ponte
sentem os pés puxados para o abismo.
Ali tudo é iminente e irreparável,
dali se vê a ameaça que paira.
A ponte é um navio ancorado.
Ali repousam os fatigados,
ouvindo o som das águas, a queixa infindável,
infindável, infindável...
Um apito dá gritos
a princípio crescendo em uivos, depois mantendo bem alto o apelo desesperado.
Passam navios. Tiros. Trovões.
Quando virá o fim do mundo?
Por cima da ponte se cruzam
reflexos de fogo, relâmpagos súbitos, misteriosos sinais.
Que combinam entre si os astros, inimigos da Terra?
Quando virá o fim dos homens?
A ponte pensa...

(Dante Milano)

Concentração

Foto: Martin Preissner

A luz da escrivaninha pisca
o livro aberto sobre a mesa
buzinas lá fora
a cidade chama
vozes,
ruídos,
um grito.
Blecaute.
O computador desliga
e-mail,
mensagem,
resposta.
O celular
o livro aberto sobre a mesa
em que página parei?
O e-mail,
a resposta
página 55.
O telefone toca
é hora do jantar
a cidade, lá fora, chama.

Priscila Mondschein

"Poeta é quem vê"

Foto: Eckenheimer

O poeta me viu

bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou

a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz

poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim

diz

(Alice Ruiz)



Sobre domingos




Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

(Carlos Drummond de Andrade)